Um jogo. Uma série. Uma inspiração. Enfim, a arte.

Por Gustavo Hitzschky

AVISO: contém spoliers sobre a trama de Metal Gear Solid 4

Ruy Castro, jornalista conhecido por compor belas biografias, escreveu em uma crônica na Folha de S. Paulo que biografado bom é biografado morto – e de preferência com no mínimo dez anos de hiato entre a morte e a publicação da obra. Geralmente, logo após o falecimento de alguém, tendemos a esquecer os defeitos e vacilos que tal pessoa teve em vida, elevando-a quase que instantaneamente ao status de ser irreprimível e divino. Com o transcorrer do tempo, tudo aquilo de ruim que o sujeito produziu ressurge, e ele perde a aura de ente intocável. Não é questão de falar mal ou bem, mas simplesmente de equilibrar as informações, como pede o bom jornalismo. Passada a década, os entrevistados que servirão de fonte poderão falar sobre o estudado de uma maneira mais condizente com o que ele ou ela de fato foi, dando credibilidade ao que se lê.

Fico pensando se o mesmo vale para os videogames. Quando escrevemos a resenha de um jogo, é comum que o façamos imediatamente depois de termos passado um tempo com ele que consideramos suficiente, de modo que estejamos aptos e confortáveis a discorrer sobre o título em questão. Vejo aqui um problema: se o jogo for ruim a ponto de nos deixar furiosos e frustrados, podemos fechar os olhos a detalhes positivos que porventura passaram despercebidos. A raiva será tanta que nem mesmo os acertos, por mais escassos que sejam, vão ser considerados. Isso vale também para os casos opostos, com aqueles jogos que gostamos em demasia. E se simplesmente ignorarmos as mancadas cometidas pelo time de produção em decorrência de um amor incondicional por um dado game?

Levantadas essas questões, me pergunto: seria este o momento ideal de escrever uma resenha sobre Metal Gear Solid 4: Guns of the Patriots,  sendo que o terminei há poucos dias? A experiência vivida de maneira tão plena e total não seria um fator que enevoaria o poder de análise e crítica de um jogador? Para tal indagação, acredito que a melhor resposta seja a seguinte: não importa quanto tempo passe entre o final de MGS4 e a execução de um texto a seu respeito. As cenas presenciadas e digeridas jamais serão apagadas da memória, independente da quantidade de tempo transcorrida. E aquilo que era genial há dez anos não perderá nunca a majestade.


Claudio Prandoni já fez aqui uma bela e merecida homenagem a Hideo Kojima com seus agradecimentos. De minha parte, digo que também haverá elogios e aplausos, mas tenho a certeza de que nada que se escrever acerca de Metal Gear Solid 4 estará à altura de sua  grandeza. Podemos falar sobre ele até 2014, elencando um sem-número de pontos fortes e momentos memoráveis. Absolutamente nada nem ninguém conseguirá discorrer sobre o jogo como ele merece, esmiuçando todas as sutilezas e maravilhas que Hideo Kojima compôs em uma sinfonia que jamais desafinou.

Vocês devem se lembrar dos trailers mais antigos de MGS4 e das notícias divulgadas. Recordo que li várias vezes algo assim. “Snake estará no meio de um conflito armado, em que haverá as facções A e B. Inicialmente, você se manterá neutro, mas pode obter vantagens se ajudar o grupo A ou B. Pode ser que auxiliando determinada causa, o caminho para o herói se tornará mais fácil” etc. De fato, isso acontece nos dois primeiros atos, mas não nos esqueçamos que existem  cinco deles. Ou seja, as batalhas entre as milícias locais e as PMCs estarão presentes basicamente nos cenários inaugurais de MGS4. Confesso que pensei que esta seria a tônica ao longo de toda a ação, mas felizmente me enganei.

Não obstante a gritaria e alvoroço de tiros que pipocam na tela e passam sobre a cabeça de Snake o tempo todo, aquilo que sempre moveu a série, o elemento stealth, continua lá mesmo nessas ocasiões. Evidente que há maneiras e maneiras de jogar – como supracitado, pode-se partir para a porradaria a fim de obter uma mão como facilitador à vereda do protagonista. Claro, engajar-se em um confronto aberto nunca foi a melhor maneira de atingir algo em MGS. Podemos operar de forma compassada, ritmada, identificando os componentes do cenário em ruínas e usando-os a nosso favor.

Uma coisa que me desanima para terminar Metal Gear Solid 3: Snake  Eater novamente é a complexidade da jogabilidade. É preciso estar treinado para engatar a ação em MGS3, e não adianta voltar ao jogo depois de uma longa ausência pensando que dominaremos as rédeas com tanta facilidade – imaginando isso porque já finalizamos o jogo uma vez. Para mim, o 3 atinge o ápice da dificuldade em termos de controle, e MGS4 foi esperto o suficiente para suavizar este empecilho. Não que a aventura seja desprovida de complicações no assunto, porém é notória a tentativa (com êxito) de tornar a ação mais fluida e menos travada. Sem entrar em muitos detalhes, basta dizer que não é necessário interromper os fatos para mudar a camuflagem a cada novo terreno percorrido. A OctoCamo funciona de modo que é preciso apenas deitar no solo ou tocar a parede para que Snake adquira a textura do ambiente,  em vez de pausar, trocar a vestimenta e prosseguir.

Pelo menos no começo de minha experiência com o 4, não me apeteceu nem um pouco a câmera livre, presente anteriormente em Metal Gear  Solid 3: Subsistence. Não sei, a visão por cima sempre me deixou bem confortável, e a considerava ideal. A princípio, é estranho controlar Snake e concomitantemente ir ajustando a perspectiva com o analógico direito, porém em poucas horas a operação se converte em algo mecânico, automático, imperceptível. De maneira nenhuma isso atrapalha o prazer que é jogar MGS4.

Acredito que o maior pecado que um leigo na série possa cometer seja começar a franquia por este episódio. A afirmação é deveras óbvia, mas pensemos que alguém pode não ter aproveitado os demais capítulos, comprado o PS3 e adquirido também MGS4. Faça um favor a si e inicie pelo começo. Corroboro com a tese de que Guns of the Patriots é o laço do presente no qual está a série Solid, sendo uma oferenda divina àqueles que com tanto afinco e entrega se dedicaram a ela desde 1998 e antes, com as incursões de MSX. Os momentos mais marcantes do 4 são justamente os que fazem menção aos fatos do passado, tão ricos e presentes na memória dos jogadores. Snake irá morrer ou não? A tela “Press Star” já o exibe em um cemitério, muito parecido com aquele que se vê no final de Snake Eater. Seria aquele o túmulo da The Boss? E o que Snake estaria fazendo ali? Qual é a graça de passar por MGS4 sem que essas dúvidas nos assolem com freqüência?

Relato agora algo que para mim, Claudio e Alexei era uma rotina na faculdade. Durante todo o ano quando ainda estudávamos na Cásper, nós três falávamos sem cessar sobre o incidente do tanker em MGS2, mais precisamente o encerramento dessa parte. O Ocelot aparecia aplaudindo o discurso do general, traindo o Gorlukovich etc. Lembro que dizíamos que este era o excerto mais genial de toda a franquia. Era. O ato 4 de Guns of the Patriots consegue o que parecia impossível e supera  tal momento. Já no briefing da missão, tomamos conhecimento de que iremos para Shadow Moses novamente, revisitando o lugar em busca de Liquid Ocelot, que quer se apoderar da Ray Gun de Rex para destruir o sistema JD dos Patriots. Acho que quem jogou sentiu a mesma emoção que eu quando notamos que o destino seria o Alasca. É fascinante, não dá pra acreditar. De repente, e não mais que de repente, antes do começo da missão em si, a tela fica preta por mais tempo que deveria.  Subitamente, nos vemos na ilha, em frente ao heliporto, perto da entrada do local onde as ogivas estavam situadas. O gráfico é aquele mesmo de 98, do MGS original. Os comandos não mudaram. É um flashback  jogável, que pode durar menos de dois minutos. E essa passagem tão efêmera, tão insignificante, tão vazia para quem não sabe o que está acontecendo, se torna o ponto mais poético e brilhante que eu presenciei, a estrofe de convergência máxima entre Guns of the Patriots e o primeiro, ao qual há tantas referências. Ficaria satisfeito se parassem por aí, mas não. Quando a imagem volta para Snake no helicóptero, pronto para desembarcar, seu rosto é aquele pixelado e quadradão, numa imagem que não deve ter mais de um segundo, e então ele retoma a expressão realista e cansada. Estamos em Shadow Moses. A nevasca predomina, caminhamos por locais familiares. E nos apunhalam o coração com um trecho da música “The best is yet to come”, também do MGS original. E eles continuam a castigar com a recordação dos diálogos via codec que acompanhamos nos idos de 98. Lembram do meu post com o título “Perplexidade“? Aqui está o motivo. No início deste ato, ganhamos uma camuflagem facial que simula o Snake pixelado do 1. Quero saber se algum insensível aqui teve a coragem de não jogar em Shadow Moses com essa máscara.

Como eu disse, existem várias alusões à toda série, em especial ao 1. Cito por exemplo o nome das integrantes da Beauty & the Beast Corps. Elas aparecem na seguinte ordem: Laughing Octopus, Raging Raven, Crying Wolf e por fim Screaming Mantis. Depois de derrotadas, há um relato sobre o passado das moças, tendo em comum o sofrimento que as levaram a um estado de loucura, por assim dizer. Todas elas justificam a partir de sua história o adjetivo que acompanha os nomes. E ainda recebemos a visita daquele que na minha opinião é o maior vilão da franquia. Quem é? Desculpe, mas a cota de spoilers está acabando, é sacanagem revelar tanto.

De fato, há muito, muito, muito para se falar sobre MGS4. Poderia esmiuçar aqui a história quase inteira, visto que ela é mais simples, direta e objetiva que a do 2, capítulo que na trama da saga vem imediatamente antes. Poderia falar sobre a importância de Eva (ou Big Mama); a presença de Akiba, integrante da equipe de Meryl que, acredite, já apareceu anteriormente; os retornos triunfais de Raiden, Vamp e Naomi, e o fim trágico que alguns obtiveram; a verdadeira e longamente aguardada revelação sobre a identidade dos Patriots, e a aparição do chefe deles no epílogo; a visita de alguém há muito tempo dado como morto; o que acontece com Old Snake; o combate final que não poderia ser de outra maneira, dadas as referências infinitas ao MGS original; o esmagamento dos dedos em um dos momentos derradeiros da aventura, quando Snake está literalmente se arrastando e o jogador experimenta aquilo que o herói encara na tela. Na verdade, acabei falando sobre isso agora mesmo, porém de maneira resumida. Mas não vou cometer a injustiça de destrinchar esses itens elencados, porque um jogo como este deve ser aproveitado com calma, em doses diárias homeopáticas, durante muitos anos. Vocês sabem que não damos notas aos nossos reviews e, apesar do indiscutível 10, 100%, cinco estrelas ou o que for, reduzir Metal Gear Solid 4: Guns of the Patriots a um conceito numérico ou informação visual seria desrespeitar um dos maiores games da história. Seria relevar a sua importância e fazer pouco caso de uma série que desperta sentimentos e sensações como raras vezes ocorre, tal qual um livro ou filme, ou até mais do que eles. Admitir que a série tenha chegado à conclusão é quase impossível para mim. Não sei como terminar o texto. Acho que não quero.

Agradeço a Hideo Kojima e a toda sua equipe pela obra de arte realizada. Anos passarão, gerações virão, nós morreremos. Mas o legado da Kojima Productions é perene, não há dúvidas. Durante a vida buscamos reconhecimento, tentamos realizar feitos notórios que sirva de exemplo e inspiração para os demais, e é tão comum falhar nessa tarefa. Neste aspecto, acho que Kojima pode descansar sem preocupações.

Desculpe o texto meio desconexo, descontínuo. Mas para mim a emoção é mesmo muito grande. Para concluir, lembre-se: antes que haja alguma coisa, o número 1, é preciso que venha primeiro o zero. Do nada, da não-existência, do caos, do vazio, surgem idéias e conceitos que podem revolucionar o mundo e fazer diferença. Hideo Kojima triunfou. E quem viu as cenas derradeiras de Guns of the Patriots seguramente me entendeu.

Algumas coisas não deveriam ter ponto final. Só reticências…

9 Respostas to “Um jogo. Uma série. Uma inspiração. Enfim, a arte.”


  1. 1 Claudio Prandoni 18/07/2008 às 9:41 am

    Tenha a bondade, mestre Hitz.
    Sua eloqüência para descrever certos trechos é impressionante e marcante. O excerto no qual fala do início do Ato 4 trouxe mim todas as lembranças fortes – as recentes de MGS4 e as fulminantes de MGS.

    O momento em que Old Snake acorda do sonho e vemos de relance seu rosto pixelado pode ser visto no trailer MGS Revived – aquele que mostrou Shadow Moses em MGS4 pela primeira vez.

  2. 2 Platy 18/07/2008 às 10:51 am

    O caramba … a série não chegou a conclusão .. o q chegou a conclusão foi a saga do Snake … isso ja foi falado 300 mil vezes =P

    Eles vão fazer mais metal gears … só num vai ter o vovo snake … oq não impede de ter mais raiden/big boss/vamp ou sei la qual mais personagem … se bobear até mais snake como npc pra relembrar =)

  3. 3 Marcus Oliveira 18/07/2008 às 1:35 pm

    Eu fechei o guns of the patriots ontem a noite, e tudo que me fez passar esta noite em claro delirando em excitação está descrito nesse post.

    Thanks, mestre Hitz.

  4. 4 Fabão 18/07/2008 às 5:11 pm

    Análise muito bem conduzida, Metre Hitzman. É notável o seu esforço para manter os spoilers em um nível aceitável, o que foi muito nobre da sua parte. Quanto à “desconexão” do texto, acho que o que fiz para a GameMaster (e que devo publicar daqui alguns dias no Gamer Lifestyle) também sofreu desse mal. Não adianta, é culpa do Kojima e de sua obra maior que qualquer texto sobre ela. :P
    Parabéns pela análise-homenagem-relato! ^_~

  5. 5 Fernando Cabelo 18/07/2008 às 6:47 pm

    Nossa… Deixa eu respirar agora…

    Excelente relato!

    To louco pra jogar!

    Está chegando… Em agosto terei o meu.

    Só não sei se vou ter coragem de jogar em baixa resolução…

    Droga… Preciso de uma TV!!!

    ACho que vou começar a jogar todos de novo.

    :-D

  6. 6 Gustavo Hitzschky 18/07/2008 às 7:44 pm

    @ Prandoni

    Apenas coloco em prática tudo o que vc tenta ensinar para este humilde serviçal, mestre!!

    @ Platy

    Acho que eu não me fiz entender muito bem (texto amalucado). Também acredito que eles farão mais jogos da série Metal Gear (Alexei e eu já apostamos em uma versão Revolver Ocelot), mas penso que a franquia “Solid” fica por aqui mesmo. Foi isso que quis dizer, embora ache que não deu muito certo :P

    @ Mestre Oliveira

    Ah, o Claudio me disse que estava falando com vc no msn, cara, e que vc tinha acabado de terminar o MGS4. E não precisa agradecer, é nois!!

    @ Fabão

    Valeu, Fabão, sempre assíduo nos comentários do Hadouken. Pode acreditar que com esse simples gesto de opiniar, Vossa Reverendíssima nos dá muita força!

    @ Fernando Cabelo

    Pois é, Cabelo, vc me lembrou de algo que me esqueci de comentar. A diferença entre jogar em resolução normal e HD é berrante. Ainda não tinha a TV de LCD quando joguei pela primeira vez, mas agora tenho a intenção de terminar de novo em alta resolução. Estou no comecinho, mas não tem nem comparação. Vá de HD se puder, sem dúvida.

  7. 7 Pablo Raphael 18/07/2008 às 9:55 pm

    Que jogo. Que história. E que bela homenagem.

  8. 8 Jorge Herrero 19/07/2008 às 11:00 pm

    MGS é uma obra magnífica sem comparações.
    Assim como Miyamoto nasceu para o Mario, Kojima nasceu para Metal Gear
    não tem como substituir.


  1. 1 Rodrigo Flausino na Eleição Social Blogueira 2008 : Rodrigo Flausino Trackback em 13/12/2008 às 6:26 pm

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