Por Gustavo Hitzschky
Enemy: Tempest of Violence é um dos jogos mais difíceis, desafiadores, viciantes, frustrantes e maravilhosos que já joguei. Simplesmente isso.
O game foi lançado em 1997 sob a batuta do suíço André Wüthrich, que ficou a cargo do conceito, roteiro, programação, level design (aliás, Enemy é uma verdadeira aula de level design), gráficos e música. Feito exclusivamente para os computadores Amiga, desenvolvidos pela Commodore entre os anos de 1985 e 1994, Enemy não me parece muito conhecido entre os jogadores do continente americano. Isso porque o Amiga sofreu por essas bandas por conta de uma total ausência de marketing durante o período em que esteve no mercado. Já na Europa a situação foi oposta, e ainda hoje vemos muitos jogos homebrew para o Amiga cuja origem é o Velho Mundo. Como a Commodore tinha operações quase que inteiramente independentes por lá em relação à matriz americana, os europeus tocaram o barco à sua maneira e acertaram ao classificar o Amiga como um sistema de jogos, mais do que de qualquer outra coisa. Aproveitando-se do fato de que, nos anos 1980, o mercado de consoles não estava totalmente estabelecido na Europa e os computadores caseiros possuíam relevância, a Commodore encontrou um terreno fértil que explica o sucesso da plataforma ali e as raízes europeias de muitos jogos. Ainda assim, Enemy não me parece conhecido nem mesmo entre os entusiastas do computador, o que certamente é de se lamentar.
Então como é que foi que cheguei a Enemy? Foi graças a Eric Fraga, um dos pilares do canal Cosmic Effect (que você pode conferir tanto no YouTube quanto na Twitch), que um dia resolveu fazer lives desse estranho e desconhecido jogo. Por sua vez, Eric encontrou Enemy por conta do blog Amiga Reviews e do streamer australiano Macaw45, que levou mais de 45 horas para finalizá-lo (mas não acho que o nome tenha a ver com o tempo do jogo). Aliás, há um post no Kotaku sobre a peregrinação de Macaw em Enemy, porém sugiro a leitura com moderação por conta de spoilers sobre o final.
(Ao concluir a minha jogatina, li o texto do Kotaku e, ao saber como Macaw havia resolvido o último desafio, fiquei totalmente estarrecido e tive até que ver o vídeo em seu canal na Twitch para comprovar a veracidade do post. Minha fascinação se deu porque não fiz a mesma coisa que o australiano, e mesmo assim consegui. Mais sobre jeitos diversos de triunfar em Enemy adiante.)
No site do selo Anachronia, criado pelo próprio André Wüthrich, o jogo é descrito como uma aventura de ficção científica (uma definição alternativa seria jogo de ação lateral, talvez), contendo, inclusive, um modo para dois jogadores (o qual não tive a chance de testar). A história é mais ou menos a seguinte: em dezembro de 2029, a Missão para Investigação e Recuperação de Objetos Alienígenas em Marte, ou simplesmente MISAM, na sigla em inglês, com o apoio financeiro da Organização da Nova Investigação Espacial Europeia (NESI), quer investigar três corpos misteriosos situados a 800 km de Marte, e parte para lá a fim de solucionar o tal enigma. O curioso é que tais objetos não orbitam o planeta vermelho de um modo natural, pois parecem sempre estar posicionados atrás de Marte, escondendo-se de telescópios — o que impossibilitou a sua detecção a partir da Terra (os objetos alienígenas foram descobertos pela nave Cassini III).
Quase dois anos depois, em novembro de 2031, a W.S.S. Cosmotica é lançada em direção a Marte com uma tripulação de 17 pilotos, 226 cientistas, seis médicos e 24 soldados. Após seis meses, com a possibilidade de contato visual, a tripulação confirma que se tratam de naves espaciais com seis quilômetros de extensão cada, batizando-as de Cromo I, II e III. Passados alguns dias de exploração, os problemas começam — na forma de vida alienígena, especificamente a raça Tschahis. Agora só restam seis indivíduos armados para dar conta de uma autêntica horda de oponentes.
O enredo vem muito bem elucidado no manual do jogo, que, como acontecia em jogos antigos, é parte fundamental da experiência. “Você NÃO irá ter sucesso com violência. Você NÃO terá sucesso com esperteza. Você NÃO terá sucesso com habilidades precisas. Mas com a combinação certa você terá sucesso. Encontre-a”, é uma das dicas que encontramos nele. Para quem reclama dos pulos exagerados, o manual explica: os personagens possuem botas especiais que permitem realizar saltos elevadíssimos e amortecer quedas.
“O manual foi importante para mim. Por um lado, ele deve introduzir o jogador à trama. Por outro lado, muitos aspectos precisam ser explicados para um melhor manejo. Os controles, por exemplo. Não queria que o jogador tivesse que usar o teclado, portanto tive que implementar comandos complexos no joystick. Então era importante explicar exatamente como ele funciona”, disse André Wüthrich em entrevista realizada por e-mail. E ele está certo. Leia ao menos as páginas iniciais do livro de instrução a fim de se familiarizar com os controles, que de fato são um pouco intrincados no início.
Pode-se dizer que é praticamente impossível passar de primeira das 34 fases. Isso porque cada nível tem um limite de tempo e em geral o mapa é enorme. Um objetivo muito comum, encontrado praticamente no jogo todo, é sobreviver e chegar à saída do local, e a dinâmica funciona assim: o jogador avança um pouco, enrosca em alguma parte mais complicada e finalmente consegue superar um dado obstáculo. Porém, como perdeu muito tempo, não é possível alcançar a saída. Joga-se uma segunda vez, com a convicção de que agora terá tempo suficiente para terminar o level. E então empacamos em mais uma parte… Enfim, entra-se num ciclo que para mim só terminou no fim do jogo.
A ação se desenrola dentro das três Cromos, e em cada fase se alterna entre uma equipe diferente em pontos diferentes de cada uma das naves. O bacana é que Enemy, como fica evidente no excerto supracitado do manual, mescla missões em que temos de resolver alguns puzzles, algumas em que há elementos de stealth e outras de tiroteios violentos, e mesmo com tantas fases o jogo jamais fica enfadonho. Embora os objetivos sejam similares (quebrar todos os ovos alienígenas, resgatar um dado número de civis e/ou aliados, neutralizar aliens Stemmo, entre outros), nunca se tem a impressão de que o game está enrolando o jogador e já devia ter terminado. Isso porque, mesmo em níveis mais avançados, ainda descobrimos mecânicas que não haviam sido vistas até então. Para ilustrar meu ponto, cito o momento em que, para que passemos de uma tela sem tocar o alarme que está no chão (o que impossibilita qualquer chance de vitória), é preciso atirar em fios que se encontram acima da cabeça do personagem. Se não me engano, é a única vez em todo o jogo em que se pode realizar tal ação.
Entre os perigos do caminho estão os aliens Tschahis, lagartos bípedes que não poupam esforço quando colocam algo na cabeça, ainda que isso signifique a morte para eles; Stemmos, uma espécie de dinossauro/lagarto que se esconde em compartimentos no chão e abocanham o jogador caso ele passe por ali; metralhadoras automáticas com munição ora finita, ora infinita, acionadas assim que detectam nossa presença; esteiras que devem ser atravessadas no tempo certo a fim de evitar quedas que quase sempre causam morte instantânea; alçapões que se abrem quando passamos sobre eles ou quando damos um tiro no chão (às vezes é preciso fazer isso para avançar), entre outros. À disposição temos uma pistola (à qual pode ser acoplado um silenciador), uma escopeta, que além de um tiro poderoso é usada como arma de combate corpo a corpo quando não se tem munição, uma metralhadora, com a possibilidade de ter rajadas mais velozes com o uso do megablaster, além de granadas e de uma outra arma que não cito por motivos de spoiler. Ademais, temos um item que vai montando o mapa conforme passamos pelas telas (por vezes temos o mapa completo da fase acessando certos computadores), sensores de vibração que detectam alçapões e Stemmos, e scanner de movimento, que nos alerta sobre inimigos nas telas ao redor daquela em que nos encontramos. Finalmente, temos as cápsulas de energia para recuperar vida.
Não há textos no meio das fases de Enemy para explicar a história ou o que o jogador deve fazer a seguir. Para isso, é necessário prestar atenção a um tipo de briefing que antecede todas as fases, e também ao relatório que procede cada um dos níveis. Além disso, antes de cada missão temos acesso aos nossos objetivos naquela fase, o soldado que controlamos, em que nave nos situamos e a posição que ocupamos nela, e também dicas e conselhos (nada muito evidente ou que facilite demais para o nosso lado). Algumas fases mais avançadas não trazem dicas e conselhos.
O level design, como escrevi no princípio, é absolutamente fantástico e você percebe como André Wüthrich investiu bastante tempo em cada nível. É preciso ter muita atenção aos itens que o jogo proporciona e em que ponto são oferecidos. Por que há uma munição de shotgun aqui, nesse momento, sendo que aparentemente já matei todos os inimigos do setor?
Tive e tenho dificuldades em traçar qualquer paralelo entre Enemy e outro game que tenha jogado. No começo pensei em Oddworld: Abe’s Odyssey, mas não é exatamente isso. Perguntei a André sobre inspirações na criação de Enemy. “Em Prince of Persia, eu gostava da ideia de ir de sala em sala e nunca saber o que está te esperando na seguinte. Também adoro a estranheza de Another World. Achava a trama por trás desse jogo excelente”. André menciona ainda The Persian Gulf Inferno, lançado para o Amiga em 1989 por uma equipe de programadores dinamarqueses. Para quem viu ou jogou Enemy, as semelhanças de fato estão lá, sobretudo no HUD.
No que diz respeito à parte sonora, a música não se mostra sempre em Enemy. Em vez disso, ela é acionada em determinados pontos, de modo que em boa parte do tempo não ouvimos nada além dos passos dos personagens (ou os gritos dos aliens em um tiroteio). Isso aumenta a sensação de isolamento no espaço, a ideia de se estar longe de casa e a espreita das ameaças que podem vir de todos os lados, com o silêncio criando uma atmosfera crescente de tensão.
Para mim, o único ponto negativo em Enemy fica por conta da tradução para o inglês (o original é em alemão). Notam-se erros de ortografia e frases cujo sentido é um pouco confuso, mas nada que atrapalhe, por exemplo, no entendimento dos objetivos das fases.
Quando terminei Enemy, tive a sensação de que havia apenas uma forma de passar da maioria das fases do jogo (inclusive fiz uma pergunta a André nesse sentido). Mas, ao ver o que Macaw fez na última fase e as lives do Eric jogando no canal Cosmic Effect, sobretudo os levels que eu já havia superado, notei que ele fazia algumas coisas diferentes de mim. E a resposta de André não deixa dúvida. “Em alguns puzzles, somente uma solução bem específica está presente. Mas fiquei surpreso, em streams, ao ver como os jogadores às vezes encontram uma alternativa. Eles superaram o problema, mas não do modo como planejei. Isso para mim foi incrível”.
Enemy: Tempest of Violence teve um efeito muito forte em mim. Quando não estava jogando e havia empacado em alguma fase, sempre pensava em algum jeito de sair da sinuca de bico em que estava enquanto realizava outra atividade. Se, perto da hora de dormir, eu passava de fase, nem queria saber como seria a seguinte: era melhor ir para a cama com a cabeça limpa e nem ver o que me aguardava na próxima tela. Se cometesse o erro de me recolher preso em dado ponto do jogo, demorava a pegar no sono porque ficava tentando achar a solução mais adequada e acordava querendo jogar a fim de pôr em prática o plano desenvolvido no sono intranquilo.
Cabe aqui um registro importante: André Wüthrich e David Röskamm, que, ao lado de André, é o responsável pelo storyboard, level design e gráficos de Enemy 2: Missing in Action (sim, há uma sequência!), estão preparando novas versões de ambos os jogos para corrigir bugs que foram identificados enquanto André assistia a lives de Enemy. A ideia é lançar as atualizações ainda em 2021, portanto fique ligado.
Dar uma chance a Enemy pode ser um caminho sem volta. Você vai se frustrar, vai achar que não há modo de passar daquela maldita fase (12, 21 e 33, estou falando com vocês), vai se encantar com o nível de desafio oferecido… Se o tempo lhe permitir, provavelmente não passará um dia sem jogar ao menos alguns minutos (que, num piscar de olhos, se tornam horas). Encantador, envolvente, extremamente difícil, único, eterno. A internet está aí com vários tutoriais que ensinam a emular o Amiga (Enemy: Tempest of Violence está disponível gratuitamente para download, assim como Enemy 2: Missing in Action). Agradecimentos efusivos a André Wüthrich por ter criado o maior jogo de todos os tempos, na minha modesta opinião, e pela entrevista (que você confere a seguir na íntegra). E, claro, ao Eric Fraga, por ter me dado a oportunidade de conhecer o jogo.
ATUALIZAÇÃO: Após ler o post com o auxílio de um tradutor online, André Wüthrich me mandou um e-mail em que destaco o seguinte excerto: “Você mencionou os erros de digitação no texto. Infelizmente é verdade. Estamos no processo de consertá-los. Na nova versão que planejamos, os textos vão melhorar bastante. O próprio Macaw45 [streamer australiano que citei no começo do post] vai verificar os textos revisados no final”.
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Hadouken: Como foi criado o estúdio Anachronia, onde e quando?
André Wüthrich: O Anachronia não é uma empresa ou uma organização. É simplesmente um selo pessoal [criado] especialmente para o jogo Enemy.
H: Em quanto tempo o jogo foi desenvolvido? Se você não se importa de dizer, qual foi o orçamento?
A.W: Não sei dizer exatamente. Não me lembro de quando escrevi a primeira linha [de código] do programa. E mais ou menos na metade do projeto tive que fazer uma pausa longa por conta de uma doença nos olhos. No fim, demorou mais de seis anos desde o primeiro rascunho até o projeto finalizado. Meu orçamento foi mínimo. Não importava porque fiz quase tudo sozinho. Os únicos custos foram as traduções de texto e a impressão das caixas e dos manuais de instrução.
H: Enemy: Tempest of Violence, como muitos jogos do Amiga, parece único. Na verdade, até mesmo cada fase parece única, já que há muitas mecânicas ao longo da aventura e ainda se descobrem coisas novas para se fazer no game mesmo depois de várias fases. Quais jogos inspiraram você a criá-lo? É possível compará-lo com outros jogos?
A.W: Há alguns jogos de computador que inspiraram a ideia de Enemy. Em Prince of Persia, eu gostava da ideia de ir de sala em sala e nunca saber o que está te esperando na seguinte. Também adoro a estranheza de Another World. Achava a trama por trás desse jogo excelente. E daí me dei conta: Um game se torna muito melhor quando tem uma história boa que cativa o jogador. Eu também queria ter isso. Mas no início havia The Persian Gulf Inferno. Fiquei impressionado com os tiroteios intensos. Mas faltava alguma coisa. Senti que havia mais a ser feito com esse conceito, então comecei a pensar. Os primeiros passos na direção de Enemy foram tomados. Meu objetivo foi criar um jogo que misturasse batalhas ferozes e quebra-cabeças desafiadores, acompanhados de uma boa história.
H: O jogo foi lançado em 1997 e então a versão EasyPlay veio em 2011. Existe uma razão para uma demora tão grande?
A.W: Após a finalização do jogo em 1997 não havia nenhuma atualização planejada. Eu havia vendido os meus computadores Amiga e parado de programar. Muitos anos depois as coisas mudaram. Um grande fã de Enemy, David Röskamm, me convenceu a fazer uma sequência. Durante esse projeto, decidi melhorar também o primeiro Enemy, pois muitos jogadores me haviam relatado algumas falhas do game.
H: Além de bugs e mais tempo para completar as fases, mais alguma coisa mudou? Você consertou tudo o que queria? Você recomendaria jogar a versão original para uma dose extra de dificuldade?
A.W: Não, porque há bugs demais. Algumas fases mudaram muito, outras, praticamente nada. Em geral há mais tempo e mais munição. Bugs e erros de digitação foram arrumados. A posição dos pontos de save foi otimizada. Em alguns pontos as salas foram modificadas. Algumas fases foram quase que completamente refeitas (por exemplo, a fase 21). O nome “EasyPlay” engana. O jogo ainda é desafiador e algumas fases ficaram até mais difíceis. Infelizmente não pude melhorar tudo como eu queria pois não tenho mais o código-fonte. Novas versões de Enemy e Enemy 2 estão planejadas para este ano. Todas os pontos fracos e bugs conhecidos serão arrumados o máximo possível.
H: Enquanto jogava, tive a sensação de que não há formas múltiplas de passar de certas partes do jogo. Estou certo? A sua ideia foi fazer o jogador aprender um jeito específico, correto e único de superar os obstáculos?
A.W: É verdade. Em alguns puzzles, somente uma solução bem específica está presente. Mas fiquei surpreso, em streams, ao ver como os jogadores às vezes encontram uma alternativa. Eles superaram o problema, mas não do modo como planejei. Isso para mim foi incrível. Há fases em que o jogador não precisa se ater a formas engessadas [para avançar].
H: O manual do jogo começa assim: “Ao limite da tolerância. E então mais um passo…” É aí que você queria levar os jogadores, ao limite da tolerância? E conte-nos sobre o manual, já que ele é realmente completo e acrescenta demais à experiência do jogo.
A.W: Não, na verdade essa frase não se referia ao jogador, mas aos protagonistas do jogo. Mas quem sabe, talvez alguns jogadores também tenham chegado ao limite do que podiam aguentar. O manual foi importante para mim. Por um lado, ele deve introduzir o jogador à trama. Por outro lado, muitos aspectos precisam ser explicados para um melhor manejo. Os controles, por exemplo. Não queria que o jogador tivesse que usar o teclado, portanto tive que implementar comandos complexos no joystick. Então era importante explicar exatamente como ele funciona.
ATUALIZAÇÃO 2: Seguem abaixo as duas playlists das lives em que terminamos os dois jogos da série!
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